“Ouçam a minha voz que vem do meu povo. Eu sou Karaí Reté. Me chamam também de Fabiano Alves. Sou um xondaro (guerreiro) do povo Mbyá Guarani. Quando minha boca se abre e eu falo do meu povo, é meu povo que fala. Essa voz que sai da minha boca vem de muito tempo. Dos avós dos avós dos meus bisavós, e muito antes. Vem dos ancestrais, dos primeiros, dos que fizeram o mundo”.
O primeiro parágrafo do Referencial Teórico, que abre a 22ª página da dissertação de Fabiano Alves, resume um pouco da trajetória de um indígena que nesta semana segurou oficialmente o sonhado diploma de mestrado, na Unesc. As palavras em Língua Portuguesa mescladas com algumas de Tupi Guarani evidenciam a luta do membro da Comunidade Aldeia Tekoá Marangatu, de Imaruí, em defesa do seu povo.
Formado em Pedagogia para poder ensinar as crianças Guarani, o sonho de fazer mestrado começou a se tornar realidade em 2021, justamente durante a pandemia, uma época em que o ensino a distância tomou o lugar do presencial. O estudante indígena precisou de doses extras de esforço e uma ajuda especial da Universidade para que pudesse seguir firme no propósito de estudos no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA).
“Receber o desejado diploma de mestrado é um momento histórico para mim. Batalhei para adquirir mais conhecimentos e vivo um momento muito feliz. A palavra que define é gratidão.É uma emoção grande pelos desafios que enfrentei, vindo da aldeia, mas sempre acreditando que iria concluir o meu estudo e chegar ao meu objetivo. Levarei estes conhecimentos valiosos para a minha aldeia para também defender os direitos dos povos originários”, conta Alves, que agora irá definir se seguirá na vida acadêmica.
No ato de entrega do diploma, Fabiano também recebeu um presente especial da Universidade: uma máquina de serigrafia que contribuirá com a sua comunidade.
Desbravador
Karaí Reté, como é o seu nome original, defendeu a dissertação no fim de 2022 e nessa semana, acompanhado da esposa e dos dois filhos, recebeu o diploma das mãos da reitora Luciane Bisognin Ceretta.
“A Unesc é uma Universidade Comunitária que tem a abrangência e a completude para acesso e permanência de todas as pessoas em sua missão. Ainda precisávamos chegar mais próximos dos povos originários que podem se reconhecer na Instituição e retornar para as suas aldeias com toda a expertise que constroem na Universidade e melhorar a vida das comunidades onde vivem sem perder a identidade. Ao contrário, trazendo esta identidade para dentro da Universidade para que ela seja historicamente protegida”, enfatiza a reitora.
Luciane enfatiza que a coragem e a ousadia de Fabiano abrirá portas para outros indígenas. “Não foi fácil para ele superar todos esses desafios, superando as barreiras geográficas; da língua; da família; do trabalho; morar fora do seu lugar e vivenciar uma pandemia neste processo”, enfatiza.
“O Fabiano é um desbravador e, acima de tudo, um espírito evoluído. Gosto muito de dialogar com ele e aprender sobre lutas coletivas, algo que os povos indígenas têm muito forte. Ele traz tudo isso para dentro da Universidade e compartilha com a comunidade acadêmica todos estes saberes, o que foi muito precioso”, relata a reitora.
Primeiro indígena formado pela Unesc, Fabiano desbravou um caminho que passa a ser trilhado por outros integrantes dos povos originários, por meio do Programa de Equidade Racial, lançado pela Instituição no ano passado. Hoje, são 12 indígenas cursando uma graduação na Universidade.
“Ele abriu esta grande oportunidade e agora temos outras lutas em conjunto, porque o Fabiano, inclusive, nos traz outras reivindicações de sua aldeia. Nós oferecemos o acesso, mas eles precisam da permanência, da oferta de oportunidades para se manterem na Universidade como deslocamento; moradia; alimentação e, juntos, propusemos buscar com as forças estatais projetos e programas que fomentem a permanência deles”, completa Luciane que deixou as portas abertas para Fabiano lecionar na Unesc, caso seja de sua vontade.
Contribuição
Logo que ingressou no mestrado, Fabiano passou a fazer parte do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e Minorias (Neabi), de quem recebeu todo o apoio para realizar os estudos. O órgão da Universidade que completou 17 anos em setembro, é um grupo de estudos que trata das relações étnico-raciais, enquanto realidade afro-brasileira e indígena.
“O Fabiano foi como um presente para o Neabi e para a Universidade, por ter sido o primeiro indígena neste espaço e também a participar do Núcleo. Ele veio para este espaço com a oportunidade de estar na Universidade fazendo o mestrado e teve a felicidade de ser contemplado com a bolsa integral que parte da sensibilidade e entendimento de que os povos originários precisam resgatar algumas questões que historicamente ficaram para trás”, ressalta a coordenadora do núcleo, Normélia Ondina Lalau de Farias, incluindo que esta foi a primeira bolsa oferecida pelo Neabi.
Normélia também lembra que a chegada de Fabiano à Unesc ocorreu por intermédio do professor João Batanoli. “Ele é um grande estudioso que sempre buscou aprender sobre a cultura dos povos originários e sempre sonhou em ter um indígena na Instituição”, conta.
O novo mestre da Unesc reconhece o apoio do Neabi e da Universidade em sua caminhada. “Foi fundamental ter sempre o apoio da reitoria e de meus colegas orientadores, além de amigos que me deram apoio sempre que necessitei. Sempre batalhamos juntos e agradeço ao Neabi por todo o suporte e por garantir a bolsa para que eu entrasse na Universidade”, fala.
A dissertação
Na dissertação, Fabiano levou para a ciência acadêmica um pouco do seu modo de vida e de seu povo. O trabalho intitulado “Nhandereko Yvyrupá Py: Modo de Viver Guarani na Terra Indígena Tekoá Marangatu, Imaruí”, foi orientado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA), Juliano Bitencourt Campos.
“A pesquisa tornou-se instigante, justamente por proporcionar uma interação ética; filosófica; epistemológica; cognitiva; moral; social; política e humana de uma outra visão da realidade. Realidade do modo de vida Guarani, que tem muito a nos ensinar, e humildemente colocado pelo pesquisador e seu povo: muito a aprender com a forma de vida do homem branco. E é assim que se faz uma ciência democrática, respeitosa, inclusiva e humana”, comenta Bittencourt.
“Orientar o Fabiano foi um ‘desafio’ antropológico. Tivemos diversos momentos de interação com o seu povo; com sua cultura; com suas sabedorias e o cuidado de garantir-lhe o lugar de fala. Proporcionar este diálogo tão necessário e às vezes parecendo tão ‘distante’ entre nossas visões de mundo, foi uma experiência única. É sempre gratificante, prazeroso, instigante e complexo o diálogo acadêmico com outras formas de se ver a realidade”, pontua.
Colaboração: Agecom